Quando a tecnologia cruza a fronteira da mente

Em algum momento daquela tarde silenciosa, nós poderíamos estar pensando em algo simples, como “vou tomar café”, “devo responder aquele e-mail”, “amanhã preciso sair cedo”. O que parecia intimamente nosso, o gesto de pensar, a cena que criamos em nossa mente, poderá, por via tecnológica, deixar de ser apenas nosso: poderá ser lido, decodificado, traduzido em palavras por uma máquina.

É esse limiar que a mais recente geração de IAs atravessa: transformar a atividade cerebral em frases legíveis, quase humanas. Pesquisas recentes apontam que sistemas de inteligência artificial já conseguem, por meio de técnicas como magnetoencefalografia (MEG) ou eletroencefalografia (EEG), captar sinais cerebrais externos, sem implantes, e reconstruir o que uma pessoa está pensando ou digitando.

Em um estudo com a Meta Platforms, por exemplo, voluntários digitavam frases enquanto seus cérebros eram monitorados, e o algoritmo conseguiu decodificar essas frases com até 80% de precisão no cenário ideal.

Esses avanços científicos devem ser celebrados, afinal, prometem dar voz a pessoas que perderam a capacidade de se expressar, elevar o patamar da interação entre homem e máquina, ampliar a fronteira do que considerávamos possível. Mas, por outro lado, nos confrontam com perguntas que jamais imaginaríamos ter que fazer ou ao menos fazê-las tão cedo.

1. A promessa: comunicação, inclusão, transcendência

Imagine uma pessoa com afasia grave, ou vítima de esclerose lateral amiotrófica (ELA), condenada a uma prisão muda do corpo por anos. Imagine que ela pense: “Quero ver meu filho amanhã”, e que esse pensamento se transforme em frase, computador, voz. A promessa da decodificação de pensamentos não é menor do que essa: dar uma nova linguagem, uma nova presença no mundo para quem ficaram invisíveis entre os sinais silenciosos.

Em outro plano, pensemos em como a interface cérebro-máquina se transforma: não mais apenas teclas, touch, voz, mas o próprio impulso de pensar. A máquina deixa de esperar nosso dedo para agir, ela antecipa, traduz, exprime. Passamos de usuários de tecnologia para “pensadores com tecnologia”. Este é o salto histórico. A mente deixando de estar apenas no humano e sendo lida, compartilhada, exteriorizada.

2. A sombra: privacidade, consentimento, poder

Quando um dispositivo consegue “ler” o que se passa na mente, ainda que de modo incipiente, abre-se um abismo ético. Nossa mente foi sempre o último bastião da intimidade. O lugar onde ficamos sozinhos com nossos medos, desejos, arrependimentos, planos. Se esse bastião deixa de existir ou se tornar vulnerável como redirecionamos nossa percepção de liberdade?

Pesquisadores já alertam que a privacidade mental pode se tornar um dos debates mais importantes sobre direitos humanos nas próximas décadas.

Quem acessa esses dados? Como garantir que apenas o sujeito soberano decida o que pensar e quando exportar esse pensamento? E quando essa tecnologia for banalizada, não mais confinada a laboratórios caros e restritos, mas à superfície de nossas vidas cotidianas?

3. As implicações para o mundo corporativo

Para você, que atua na área de avaliação psicológica, esse tema tem relevância imediata. Imagine um processo de seleção que, além dos testes normativos, tenta inferir motivações ou pensamentos silenciosos por meio de tecnologia, mesmo que de modo embrionário. Ou imagine nas empresas, uma cultura de “leitura de mente” para medir engajamento, intenção de desligamento, até potencial de inovação.

É sedutor imaginar que a empresa conheça melhor que o próprio colaborador seus desejos e medos. Mas isso é também intimidador. Onde termina o suporte e começa o vácuo do controle? O que ganhamos em eficiência e o que perdemos em autonomia? Em um mundo em que dados já são combustível precioso, a mente se tornaria o recurso final e talvez sob regime, também.

4. Reflexão para 2025 e além

Estamos, de fato, no limiar de um novo paradigma. A tecnologia hoje é pesada, cara, dependente de equipamentos de ressonância e ambiente controlado, o uso comercial, popular, está longe.

Mas se olharmos para trás, veremos que nenhuma fronteira permanece à espera por muito tempo. O que era reserva de laboratório vira produto de consumo. O que era tema de ficção científica vira tema de política pública.

É urgente que, enquanto avança a capacidade técnica, também se fortaleça o arcabouço ético, normativo e humano. As empresas, universidades, governos, devem antecipar políticas de consentimento, de transparência, de soberania do sujeito, não apenas no discurso, mas em cláusulas contratuais, em design de produto e em cultura institucional.

Para 2025 e adiante, a pergunta que deixo não é “quando teremos leitura de pensamentos em massa?”,  mas “como queremos que isso aconteça?”. E, ainda mais: “quem queremos que sejamos quando isso acontecer?”.

Porque a verdadeira transformação não está apenas na máquina que lê nossos cérebros. Está em como nós reagimos a ela e escolhermos como compartilhar.

A mente humana sempre foi santuário e alavanca. Que ela continue sendo, mesmo quando se abrir à técnica.

*Alessandra Montini é diretora do Labdata, da FIA Business School

Newsletter

Fique por dentro das novidades FIA Labdata, associando-se à nossa Newsletter:

Conheça nossos cursos.